Autarcas pedem "cautela". Fim das licenças municipais "compromete" urbanismo

Simplificação dos licenciamentos, com os projetos de arquitetura dispensados da apreciação prévia dos serviços camarários, levanta preocupação quanto à gestão urbanística.

Asimplificação do licenciamento prevista no programa “Mais Habitação”, que dispensa os projetos de arquitetura dos edifícios da apreciação prévia dos serviços municipais, está a suscitar a preocupação de autarcas e agentes do setor. A medida tem levado a repetidos alertas ao Governo, com o aviso de que pode privar os municípios de um instrumento fundamental de gestão urbanística.

Uma preocupação expressa no parecer que a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) aprovou na passada semana e que será enviado ao Governo, pedindo “cautela” na definição desta medida. “Têm de ser mantidas as condições para que sejam verdadeiramente os municípios a gerir a sua gestão urbanística, os seus serviços, e não passar para a esfera exclusivamente privada”, advertiu Luísa Salgueiro, socialista que preside à ANMP, dando eco aos reparos que têm vindo a ser feitos por vários autarcas.

É o caso de Hélder Sousa Silva, presidente da Câmara de Mafra que é também vice-presidente da ANMP e líder dos autarcas sociais-democratas. Apesar de concordar com o objetivo enunciado pelo Governo de dar celeridade aos processos de licenciamento, Hélder Sousa Silva defende que é preciso encontrar outra solução – nos termos em que está definida, a proposta do Executivo terá um impacto “brutal” sobre a capacidade de gestão urbanística dos municípios e “compromete claramente um bom planeamento” do território.

“Falo com a experiência prática de quem tem o [pelouro do] urbanismo há 12 anos, numa câmara média, com cerca de cinco mil processos/ano. Mais de 50% desses processos vêm mal instruídos” e muitas vezes desconformes à lei numa área que é regulada por “um imenso quadro legal”, diz ao autarca ao DN. A este problema de “falta de qualidade” soma-se “a falta de uma visão de conjunto” de cada projeto individual que, a concretizar-se o novo quadro legal, poderá avançar sem licença camarária. Ou seja, sem avaliação quanto ao enquadramento urbanístico do projeto.

O presidente da Câmara de Mafra lembra que o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação tem um artigo específico que permite travar projetos que “afetam negativamente a envolvente e a paisagem”. “Muitas vezes invocamos estes artigo para não deixar avançar os chamados “mamarrachos””, diz Hélder Sousa Silva, defendendo que esta análise deve manter-se como uma competência prévia dos municípios e não uma verificação a posteriori. Até porque isto resultará num aumento da litigância e em prováveis – e longos – imbróglios jurídicos: “A câmara manda parar uma obra em construção, embarga, [os promotores] põem uma providência cautelar, e quando o tribunal finalmente decidir já lá está um prédio com cinco andares em vez de três ou quatro”, diz o presidente do município de Mafra, antecipando que este será “um dos grandes problemas” do novo enquadramento legal.

Fernando de Almeida Santos, bastonário da Ordem dos Engenheiros, também sustenta que deve haver “alguma verificação” por parte das câmaras quanto aos projetos de arquitetura, caso contrário tenderá a haver um aumento da litigância já com as obras em curso. Uma questão que não se coloca relativamente à parte de engenharia das edificações, onde há já um deferimento “tácito” – “Estamos mais do que preparados para esse tipo de situação”. O bastonário dos Engenheiros também sublinha a nova medida que prevê sanções em caso de atraso dos serviços públicos na emissão de licenças administrativas, que se pode revelar “complexa”, na medida em que pode levar à tentação de indeferir processos “para ganhar tempo” e evitar as sanções pela ultrapassagem dos tempos legais de decisão.

Já Paulo Ferrero, presidente da Associação Fórum Cidadania LX, dedicada à defesa do património – que tem dedicado boa parte da sua ação a protestar contra “atropelos urbanísticos”, sobretudo na capital – também não vê com bons olhos a mudança proposta pelo Governo. Uma “desregulamentação total”, diz ao DN, antevendo consequências graves “em termos estéticos, de volumetria dos edifícios, das cérceas”. Problemas que a verificação à posteriori não irá resolver: “Em Lisboa só me lembro de um caso em que houve um incumprimentos dos regulamentos, com a construção de um andar a mais, e a câmara conseguiu que fosse deitado abaixo. Pode ter havido outros, mas não me lembro”, diz Paulo Ferrero, sublinhando também que a nova lei será uma “revolução” nos serviços municipais – “O que é que vão fazer aos técnicos?”.

A proposta do Governo, ainda em versão preliminar e que esteve em consulta pública até à última sexta-feira, traduz-se, neste caso, num pedido de autorização legislativa ao Parlamento, com o Governo a propor-se alterar o regime de controlo prévio das operações de loteamento e das operações urbanísticas, previsto no regime jurídico da urbanização e edificação. O Executivo pretende “alterar o procedimento de controlo prévio aplicado às operações urbanísticas de edificação para comunicação prévia” e “definir que a aprovação do projeto de arquitetura e a apreciação dos projetos de especialidades se baseiam nos termos de responsabilidade dos autores dos projetos, o que determina o deferimento liminar do procedimento”. Fora deste novo enquadramento legal ficam as obras de urbanização e as operações de loteamento, que continuam a ser “objeto de licença pela câmara municipal”.

No futuro diploma do Governo será também definido “um regime de responsabilidade solidária entre os autores de projeto e as entidades executantes” e reforçada a “responsabilidade dos projetistas e das entidades executantes através da criação de um regime sancionatório”.

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